Criminalistas, esses criminosos!

Douglas Lima Goulart • May 27, 2025

Há alguns anos, a imprensa borbulhou com a prisão de vários advogados acusados de envolvimento com o crime organizado.


Vários mesmo, quase quarenta (!), incluindo o vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CONDEPE).


Segundo a polícia, os advogados detidos seriam suspeitos de movimentar dinheiro do crime organizado em suas contas bancárias, além de criar uma espécie de banco de dados com os nomes e endereços de agentes penitenciários e de seus parentes.


Se forem confirmadas as suspeitas, meu juízo é um só: lamentável.


Igualmente lamentáveis são os inúmeros comentários postados sobre as diversas publicações da notícia em questão, em grande número equiparando, em desvalor, o advogado criminalista à ideia que se tem de crime ou criminoso.


Apenas como exemplo, transcrevo um trecho de um comentário de um leitor:

É aquilo que a gente está sempre cansado de falar para essas autoridades de merdas. ADVOGADO QUE DEFENDE BANDIDO, É MAIS BANDIDO AINDA.”


No Blog do Reinaldo Azevedo, que conta com um controle razoável dos comentários, outro leitor postou o seguinte pensamento:

Eis com toda pompa e circunstância a apresentação de advogados criminalistas, fulaninhos que dão todo apoio aos seus sócios, que cometem crimes ao seu bel prazer, sabendo que contam com a defesa de “doutos senhores”, formados em faculdades de “direito”, caminhando exatamente na direção contrária do que prevêem a honestidade, moral e ética defendidas como os principais fundamentos de bons seres humanos. Claro, os oabistas vão se calar, sair de fininho pela porta dos fundos para evitarem comentários a propósito dessa situação, por trás da qual devem se esconder assassinatos e assaltos relatados pela imprensa. E notem que esses vagabundos com diploma nas mãos até elaboram listas de agentes penitenciários para serem executados. Fazer o quê com esse lixo com diplomas nas mãos? Desgraçadamente não temos pena de morte neste país. Um pelotão de fuzilamento seria o mínimo a ser proposto para essa gente e seus “digníssimos clientes”. Lixo, do lixo do lixo!!!

(in: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/operacao-ethos-prende-33-suspeitos-de-colaboracao-com-pcc/).


Com todo o respeito que os comentaristas não demonstraram: são uns estúpidos!


Tomam o todo pela parte, e quão diminuta parte! (Des)Entendem que por manter contato com acusados ou criminosos, também assim os advogados devem ser encarados.


Faltou ler Rui Barbosa! Faltou ler Evaristo de Morais, a Constituição Federal, o Código de Processo Penal, a Bíblia, a Torá, o Regulamento do Condomínio ou qualquer pedaço de papel que denote um mínimo de racionalidade sobre o espaço e função de cada um na sociedade.


Confundir criminalista com o crime é dizer que o lixeiro é o lixo, que o médico é o câncer, que o padre é o pecador – enfim, que são iguais.


Não venha me dizer que estes possuem apenas contato com o mal, que o combatem, ao passo que o criminalista lhe proporcionaria refúgio.


Na verdade, se o lixeiro recolhe, se o médico enfrenta e se o padre perdoa, o criminalista entende – ou ao menos busca entender – um fato do mundo para o qual todo mundo vira as costas.


O contato com o crime, com o criminoso, no entanto, é consequência... não razão de ser da Profissão.


O objetivo, o motivo pelo qual um estudante decide que quer advogar e não ser juiz, ou promotor, ou delegado, o que dá vontade de ir além, de se tornar criminalistas e lidar com lágrimas, sangue, raiva, frustrações e alegrias... é o amor.


Amor ao próximo, à humanidade e suas circunstâncias, mas, principalmente, à Lei. Ser Criminalista é isso, é amar a Lei.


Um amor doido, cego, intransigente e incondicional, a ponto de se brigar pela sua validade em todo e qualquer caso, mesmo naqueles mais horrendos.


A mesma Lei do Frei Beto tem que ser a do Maníaco do Parque, com todas as garantias, com todos os detalhes e, se a Lei for descumprida, desrespeitada, então não vale... Simples assim!


A absolvição de culpados não é um objetivo, mas o efeito colateral do império da Lei do Direito contra a Lei do Mais Forte, valendo lembrar que cabe ao criminalista, quando chamado a fazê-lo, também a defesa da vítima.


Quem não gosta, quem não entende e mistura lixo com lixeiro é gente cujo pensamento não cheira bem e que, como tantas vezes acontece, costuma bater às nossas portas pelas piores razões possíveis.


Com a maior cara de pau do mundo!

Por Gabriel Passos 9 de junho de 2025
“‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?’ — assim pergunta o último homem e pisca os olhos.” Ao elaborar o conceito do “último homem” em Assim Falou Zaratustra, Nietszche descreveu o produto terminal de uma civilização que abriu mão da transcendência. O “piscar os olhos” carrega uma ironia existencial profunda. É um gesto simbólico de apatia, de quem já não se vê capaz de concentrar o verdadeiro sentimento de se emocionar com algo; é um movimento automático, animalesco e sem qualquer densidade de pensamento ou consciência. É um ato que evidencia a ausência de poder. É como o piscar de um animal inócuo que perdeu o próprio espírito e se sujeitou acriticamente à repetição das coisas. É quase como um gesto biológico do conformismo. O último homem é aquele que não deseja mais criar, mas apenas sobreviver; não busca compreender, mas apenas se adaptar. Ele não contempla verdadeiramente mais nada. Vive sem paixão e sem profundidade. Sua segurança está na mediocridade, na repetição, no conforto existencial, superficial e estético dos algoritmos, das trends, dos reels e das séries clichês de streaming. É aquele que abdica da grandeza em troca da estabilidade anestésica de um cotidiano entorpecedor, marcado pelo “rolar de tela” desprovido do brilho real da vida, da arte e do desenvolvimento intelectual. É essa a caricatura da civilização no ocaso. É exatamente esse espírito que se manifesta, hoje, em ampla parte da advocacia brasileira. Com quase 1,5 milhão de advogados no país, a profissão que já foi exercida por grandes ícones passa por um processo de esvaziamento cultural, estético e prático. A função essencial à justiça e à democracia, prevista na Constituição da República, tem sido reduzida a um estereótipo de rede social, a uma performatividade superficial, a um exibicionismo vazio que se contenta com likes e frases feitas. A figura do advogado tornou-se personagem: chamativo, sorridente, conectado, fotogênico, mas absolutamente indiferente à densidade intelectual, à cultura humanista e ao papel histórico que lhe cabe na mediação entre o cidadão e o Estado. A advocacia não é — ou não deveria ser — apenas um produto digital. É arte, é técnica, é política. É ofício que se constrói na interseção entre o drama individual e a estrutura normativa do Estado. Mas hoje, no mercado dos milhões, fala-se sobre a advocacia sem de fato praticá-la. E pratica-se sem compreendê-la. Numa espécie de inversão do ethos profissional, a atratividade das redes vale mais do que os propósitos e a verdadeira nobreza da profissão. A estetização do ofício levou à esterilização da advocacia em todos os seus aspectos [cultural, ético, humano, intelectual e estratégico]. As referências para os aspirantes do Direito passaram a ser figurões de seriados novelescos que enriquecem heroicamente em uma trama alheia à realidade da vida e àquilo que faz – ou deveria fazer – parte da formação advocatícia. Não há drama humano, não há compromisso político, não há existência. Há apenas velocidade, eficiência performática e um arremedo de glamour que distancia o profissional da realidade e da responsabilidade inerentes à profissão. O resultado disso é um discurso advocatício infantilizado. E assim o ciclo se retroalimenta: uma sociedade superficial forma advogados superficiais, limitados à reprodução de uma estética que polui e enfraquece o elo entre a voz dos jurisdicionados e o Estado. Esse empobrecimento tem dimensão política, cultural, educacional e civilizatória. A advocacia não é apenas uma atividade privada: ela é ponte. Ponte entre o indivíduo e o Poder Público, entre o fato e a norma, entre o discurso e a Justiça. Prejudica-se, com essa crise civilizatória da advocacia, a tradução das dores concretas do ser humano em linguagem jurídica. Prejudica-se, com isso, o alcance ao sistema de justiça. Quando essa figura perde densidade, não é apenas a profissão que empobrece, mas a própria república. Esse eco também ressoa na falibilidade da formação educacional. As faculdades de Direito se multiplicaram como franquias. A formação humanística foi substituída por um apostilamento massivo do saber. A leitura de clássicos deu lugar a resumos para provas e concursos. A apreciação dos ícones que fortaleceram os pilares da advocacia deu lugar ao consumo do conteúdo viral de blogueiros do Direito. Há educação formal, mas não substancial. Aprende-se o código, mas não o país. Decora-se a lei, mas não se entende as agruras que ela pretende tratar. Falta referência, sobra clichê. A linguagem perde poesia, filosofia e o lastro com o mundo. Resta apenas uma advocacia funcional, acovardada e tecnocrática – e mesmo a capacidade técnica está comprometida pelo exercício profissional raso e acrítico. A necessidade de tradição não é saudosismo: é responsabilidade histórica. Pontes de Miranda, Sobral Pinto, Evaristo de Morais, Waldyr Troncoso Peres e tantos outros não são apenas nomes em uma estante empoeirada que ninguém mais acessa. São expressões de uma geração de advogados que compreendiam o Direito como instrumento de humanização da existência. Defendiam com palavras e com vivacidade. Dialogavam com a literatura, com a política, com a história. Sabiam que a advocacia não é uma carreira: é um chamado. Reviver essa tradição não significa repetir seus moldes, mas sim restaurar seus fundamentos. É preciso devolver à advocacia a sua profundidade, a sua espinha dorsal cultural, a sua densidade simbólica. O advogado precisa ler poesia, literatura, compreender filosofia, entender política, dialogar com o povo e com as autoridades. A resistência à figura do último homem de Nietzsche é um ato de sobrevivência institucional. É claro que é possível [e talvez necessário] se divulgar, mas se o discurso não carregar em si a profundidade de quem o fez, restará apenas a performatividade vazia de uma classe que não se reconhece mais como essencial à justiça, mas como uma caricatura digital de si mesma. A advocacia atual pisca demais seus olhos. O custo de tudo isso é muito maior do que a perda de um ofício: é o enfraquecimento da democracia, é a falência da Justiça, é a civilização que desaprende a linguagem da sua própria defesa. A advocacia não pode morrer de selfie. Há um país inteiro esperando ser defendido. Essa tarefa cabe ao advogado, não ao “último homem”.
Por Beatriz Ferruzzi Sacchetin 3 de junho de 2025
Trabalho com Direito Penal já há vários anos, e creio que nunca foi tão comum encontrar médicos e médicas envolvidos em investigações policiais e processos criminais. O que chama atenção nesses casos não é a ocorrência de falhas técnicas – que, aliás, tendem a ser exceção. O que impressiona é como a busca de responsabilização penal pode acontecer mesmo quando a conduta foi tecnicamente correta, perfeitamente alinhada com os parâmetros teóricos das melhores práticas médicas. A verdade é que, longe de representar a Justiça, muitas punições decorrem de um profundo descompasso entre a lógica da atuação médica e a forma como o sistema de justiça criminal interpreta os fatos. Arriscando um diagnóstico, diria que esse desalinhamento de expectativas é causado pela divergência de linguagem entre as duas áreas: Medicina e Direito. Por conta dessa realidade, um atendimento regular pode ser lido com desconfiança, ou mesmo reprovação. E isso tende a se agravar em casos em que efetivamente faltam elementos importantes, como documentação clara, consentimento bem registrado e justificativas técnicas que dialoguem com a linguagem jurídica. A verdade é que o sistema penal opera com outro vocabulário, outra lógica e outras expectativas. E o grande desafio da advocacia criminal está na capacidade de tradução da visão e linguagem médica para a linguagem jurídica. É certa a necessidade de um bom trabalho de tradução de termos técnicos, mas, sobretudo, é necessário um trabalho de tradução da própria visão de mundo e realidade da atuação médica. A Medicina trabalha com corpo, risco, tempo. O Direito trabalha com prova, causalidade, narrativa. O fator tempo na advocacia criminal se apresenta como prazo, e o tempo no Direito é calculado, pré-estabelecido e, quando bem utilizado, imune às pressões do imprevisto. A pessoa que julga raciocina o tempo com foco no passado: refaz os passos já sabendo do resultado – e tem todo o tempo do mundo para fazê-lo. Então, a tradução do tempo conforme a Medicina para o mundo do Direito é condição de vida ou morte – de liberdade ou reclusão – no esclarecimento dos fatos perante a o sistema de justiça criminal. Por essa divergência de tempo e linguagem, há também uma outra maneira de se encarar a forma e a formalidade. Para o Direito, não basta ter seguido a conduta correta se ela não está documentada. Não basta ter explicado verbalmente se não ficou registrado. Não basta fazer o que deveria ser feito, se falta ao fato ser transplantado ao processo na condição de prova. Quando essa lógica não é compreendida adequadamente, um atendimento corriqueiro pode facilmente evoluir para uma denúncia criminal. Verdade seja dita, a judicialização crescente da profissão médica acompanha uma tendência de judicialização de todas as nossas relações, de tal maneira a tornar a delegacia de polícia ambiente de trânsito comum de todas as categorias profissionais. Ocorre que especialmente no caso de profissionais da Medicina, a Justiça costuma se apresentar como um campo fértil para abusos e arbitrariedades, justamente por conta da dificuldade de compreensão, por aqueles que julgam, da linguagem e visão de mundo médica. Algumas práticas tendem a estar mais próximos do centro do alvo nessa empreitada do Direito Penal – uma delas é a obstetrícia, por lidar com momentos intensos, sobrecarregados de expectativa, vulnerabilidade e em regime de urgência. Cientes dessa situação, reunimos em um material direto e acessível algumas orientações básicas voltadas a obstetras, onde abordamos temas sensíveis como a violência obstétrica. O foco do material está nessa especialidade, mas muitos dos pontos abordados – como estrutura de registro, uso adequado do prontuário, coleta de consentimento e preparo diante de uma denúncia – também valem para médicos de outras especialidades que também se veem cada vez mais expostos. O e-book é gratuito e pode ser acessado no botão logo abaixo. Cuidar exige preparo e, diante de um sistema que julga por outra lógica, esse preparo precisa ser também jurídico.