A Medicina na mira do Direito Penal

Beatriz Ferruzzi Sacchetin • June 3, 2025
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Trabalho com Direito Penal já há vários anos, e creio que nunca foi tão comum encontrar médicos e médicas envolvidos em investigações policiais e processos criminais.

 

O que chama atenção nesses casos não é a ocorrência de falhas técnicas – que, aliás, tendem a ser exceção. O que impressiona é como a busca de responsabilização penal pode acontecer mesmo quando a conduta foi tecnicamente correta, perfeitamente alinhada com os parâmetros teóricos das melhores práticas médicas.

 

A verdade é que, longe de representar a Justiça, muitas punições decorrem de um profundo descompasso entre a lógica da atuação médica e a forma como o sistema de justiça criminal interpreta os fatos.

 

Arriscando um diagnóstico, diria que esse desalinhamento de expectativas é causado pela divergência de linguagem entre as duas áreas: Medicina e Direito.

 

Por conta dessa realidade, um atendimento regular pode ser lido com desconfiança, ou mesmo reprovação. E isso tende a se agravar em casos em que efetivamente faltam elementos importantes, como documentação clara, consentimento bem registrado e justificativas técnicas que dialoguem com a linguagem jurídica.

 

A verdade é que o sistema penal opera com outro vocabulário, outra lógica e outras expectativas.

 

E o grande desafio da advocacia criminal está na capacidade de tradução da visão e linguagem médica para a linguagem jurídica. É certa a necessidade de um bom trabalho de tradução de termos técnicos, mas, sobretudo, é necessário um trabalho de tradução da própria visão de mundo e realidade da atuação médica.

 

A Medicina trabalha com corpo, risco, tempo.

 

O Direito trabalha com prova, causalidade, narrativa.

 

O fator tempo na advocacia criminal se apresenta como prazo, e o tempo no Direito é calculado, pré-estabelecido e, quando bem utilizado, imune às pressões do imprevisto.

 

A pessoa que julga raciocina o tempo com foco no passado: refaz os passos já sabendo do resultado – e tem todo o tempo do mundo para fazê-lo.

 

Então, a tradução do tempo conforme a Medicina para o mundo do Direito é condição de vida ou morte – de liberdade ou reclusão – no esclarecimento dos fatos perante a o sistema de justiça criminal.

 

Por essa divergência de tempo e linguagem, há também uma outra maneira de se encarar a forma e a formalidade.

 

Para o Direito, não basta ter seguido a conduta correta se ela não está documentada. Não basta ter explicado verbalmente se não ficou registrado. Não basta fazer o que deveria ser feito, se falta ao fato ser transplantado ao processo na condição de prova.

 

Quando essa lógica não é compreendida adequadamente, um atendimento corriqueiro pode facilmente evoluir para uma denúncia criminal.

 

Verdade seja dita, a judicialização crescente da profissão médica acompanha uma tendência de judicialização de todas as nossas relações, de tal maneira a tornar a delegacia de polícia ambiente de trânsito comum de todas as categorias profissionais.

 

Ocorre que especialmente no caso de profissionais da Medicina, a Justiça costuma se apresentar como um campo fértil para abusos e arbitrariedades, justamente por conta da dificuldade de compreensão, por aqueles que julgam, da linguagem e visão de mundo médica.

 

Algumas práticas tendem a estar mais próximos do centro do alvo nessa empreitada do Direito Penal – uma delas é a obstetrícia, por lidar com momentos intensos, sobrecarregados de expectativa, vulnerabilidade e em regime de urgência.

 

Cientes dessa situação, reunimos em um material direto e acessível algumas orientações básicas voltadas a obstetras, onde abordamos temas sensíveis como a violência obstétrica.

 

 O foco do material está nessa especialidade, mas muitos dos pontos abordados – como estrutura de registro, uso adequado do prontuário, coleta de consentimento e preparo diante de uma denúncia – também valem para médicos de outras especialidades que também se veem cada vez mais expostos.

 

O e-book é gratuito e pode ser acessado no botão logo abaixo.

 

Cuidar exige preparo e, diante de um sistema que julga por outra lógica, esse preparo precisa ser também jurídico.

Por Gabriel Passos 9 de junho de 2025
“‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?’ — assim pergunta o último homem e pisca os olhos.” Ao elaborar o conceito do “último homem” em Assim Falou Zaratustra, Nietszche descreveu o produto terminal de uma civilização que abriu mão da transcendência. O “piscar os olhos” carrega uma ironia existencial profunda. É um gesto simbólico de apatia, de quem já não se vê capaz de concentrar o verdadeiro sentimento de se emocionar com algo; é um movimento automático, animalesco e sem qualquer densidade de pensamento ou consciência. É um ato que evidencia a ausência de poder. É como o piscar de um animal inócuo que perdeu o próprio espírito e se sujeitou acriticamente à repetição das coisas. É quase como um gesto biológico do conformismo. O último homem é aquele que não deseja mais criar, mas apenas sobreviver; não busca compreender, mas apenas se adaptar. Ele não contempla verdadeiramente mais nada. Vive sem paixão e sem profundidade. Sua segurança está na mediocridade, na repetição, no conforto existencial, superficial e estético dos algoritmos, das trends, dos reels e das séries clichês de streaming. É aquele que abdica da grandeza em troca da estabilidade anestésica de um cotidiano entorpecedor, marcado pelo “rolar de tela” desprovido do brilho real da vida, da arte e do desenvolvimento intelectual. É essa a caricatura da civilização no ocaso. É exatamente esse espírito que se manifesta, hoje, em ampla parte da advocacia brasileira. Com quase 1,5 milhão de advogados no país, a profissão que já foi exercida por grandes ícones passa por um processo de esvaziamento cultural, estético e prático. A função essencial à justiça e à democracia, prevista na Constituição da República, tem sido reduzida a um estereótipo de rede social, a uma performatividade superficial, a um exibicionismo vazio que se contenta com likes e frases feitas. A figura do advogado tornou-se personagem: chamativo, sorridente, conectado, fotogênico, mas absolutamente indiferente à densidade intelectual, à cultura humanista e ao papel histórico que lhe cabe na mediação entre o cidadão e o Estado. A advocacia não é — ou não deveria ser — apenas um produto digital. É arte, é técnica, é política. É ofício que se constrói na interseção entre o drama individual e a estrutura normativa do Estado. Mas hoje, no mercado dos milhões, fala-se sobre a advocacia sem de fato praticá-la. E pratica-se sem compreendê-la. Numa espécie de inversão do ethos profissional, a atratividade das redes vale mais do que os propósitos e a verdadeira nobreza da profissão. A estetização do ofício levou à esterilização da advocacia em todos os seus aspectos [cultural, ético, humano, intelectual e estratégico]. As referências para os aspirantes do Direito passaram a ser figurões de seriados novelescos que enriquecem heroicamente em uma trama alheia à realidade da vida e àquilo que faz – ou deveria fazer – parte da formação advocatícia. Não há drama humano, não há compromisso político, não há existência. Há apenas velocidade, eficiência performática e um arremedo de glamour que distancia o profissional da realidade e da responsabilidade inerentes à profissão. O resultado disso é um discurso advocatício infantilizado. E assim o ciclo se retroalimenta: uma sociedade superficial forma advogados superficiais, limitados à reprodução de uma estética que polui e enfraquece o elo entre a voz dos jurisdicionados e o Estado. Esse empobrecimento tem dimensão política, cultural, educacional e civilizatória. A advocacia não é apenas uma atividade privada: ela é ponte. Ponte entre o indivíduo e o Poder Público, entre o fato e a norma, entre o discurso e a Justiça. Prejudica-se, com essa crise civilizatória da advocacia, a tradução das dores concretas do ser humano em linguagem jurídica. Prejudica-se, com isso, o alcance ao sistema de justiça. Quando essa figura perde densidade, não é apenas a profissão que empobrece, mas a própria república. Esse eco também ressoa na falibilidade da formação educacional. As faculdades de Direito se multiplicaram como franquias. A formação humanística foi substituída por um apostilamento massivo do saber. A leitura de clássicos deu lugar a resumos para provas e concursos. A apreciação dos ícones que fortaleceram os pilares da advocacia deu lugar ao consumo do conteúdo viral de blogueiros do Direito. Há educação formal, mas não substancial. Aprende-se o código, mas não o país. Decora-se a lei, mas não se entende as agruras que ela pretende tratar. Falta referência, sobra clichê. A linguagem perde poesia, filosofia e o lastro com o mundo. Resta apenas uma advocacia funcional, acovardada e tecnocrática – e mesmo a capacidade técnica está comprometida pelo exercício profissional raso e acrítico. A necessidade de tradição não é saudosismo: é responsabilidade histórica. Pontes de Miranda, Sobral Pinto, Evaristo de Morais, Waldyr Troncoso Peres e tantos outros não são apenas nomes em uma estante empoeirada que ninguém mais acessa. São expressões de uma geração de advogados que compreendiam o Direito como instrumento de humanização da existência. Defendiam com palavras e com vivacidade. Dialogavam com a literatura, com a política, com a história. Sabiam que a advocacia não é uma carreira: é um chamado. Reviver essa tradição não significa repetir seus moldes, mas sim restaurar seus fundamentos. É preciso devolver à advocacia a sua profundidade, a sua espinha dorsal cultural, a sua densidade simbólica. O advogado precisa ler poesia, literatura, compreender filosofia, entender política, dialogar com o povo e com as autoridades. A resistência à figura do último homem de Nietzsche é um ato de sobrevivência institucional. É claro que é possível [e talvez necessário] se divulgar, mas se o discurso não carregar em si a profundidade de quem o fez, restará apenas a performatividade vazia de uma classe que não se reconhece mais como essencial à justiça, mas como uma caricatura digital de si mesma. A advocacia atual pisca demais seus olhos. O custo de tudo isso é muito maior do que a perda de um ofício: é o enfraquecimento da democracia, é a falência da Justiça, é a civilização que desaprende a linguagem da sua própria defesa. A advocacia não pode morrer de selfie. Há um país inteiro esperando ser defendido. Essa tarefa cabe ao advogado, não ao “último homem”.
Por Douglas Lima Goulart 27 de maio de 2025
Há alguns anos, a imprensa borbulhou com a prisão de vários advogados acusados de envolvimento com o crime organizado. Vários mesmo, quase quarenta (!), incluindo o vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CONDEPE). Segundo a polícia, os advogados detidos seriam suspeitos de movimentar dinheiro do crime organizado em suas contas bancárias, além de criar uma espécie de banco de dados com os nomes e endereços de agentes penitenciários e de seus parentes. Se forem confirmadas as suspeitas, meu juízo é um só: lamentável. Igualmente lamentáveis são os inúmeros comentários postados sobre as diversas publicações da notícia em questão, em grande número equiparando, em desvalor, o advogado criminalista à ideia que se tem de crime ou criminoso. Apenas como exemplo, transcrevo um trecho de um comentário de um leitor: “ É aquilo que a gente está sempre cansado de falar para essas autoridades de merdas. ADVOGADO QUE DEFENDE BANDIDO, É MAIS BANDIDO AINDA .” No Blog do Reinaldo Azevedo, que conta com um controle razoável dos comentários, outro leitor postou o seguinte pensamento: “ Eis com toda pompa e circunstância a apresentação de advogados criminalistas, fulaninhos que dão todo apoio aos seus sócios, que cometem crimes ao seu bel prazer, sabendo que contam com a defesa de “doutos senhores”, formados em faculdades de “direito”, caminhando exatamente na direção contrária do que prevêem a honestidade, moral e ética defendidas como os principais fundamentos de bons seres humanos. Claro, os oabistas vão se calar, sair de fininho pela porta dos fundos para evitarem comentários a propósito dessa situação, por trás da qual devem se esconder assassinatos e assaltos relatados pela imprensa. E notem que esses vagabundos com diploma nas mãos até elaboram listas de agentes penitenciários para serem executados. Fazer o quê com esse lixo com diplomas nas mãos? Desgraçadamente não temos pena de morte neste país. Um pelotão de fuzilamento seria o mínimo a ser proposto para essa gente e seus “digníssimos clientes”. Lixo, do lixo do lixo!!! ” ( in : http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/operacao-ethos-prende-33-suspeitos-de-colaboracao-com-pcc/ ). Com todo o respeito que os comentaristas não demonstraram: são uns estúpidos! Tomam o todo pela parte, e quão diminuta parte! (Des)Entendem que por manter contato com acusados ou criminosos, também assim os advogados devem ser encarados. Faltou ler Rui Barbosa! Faltou ler Evaristo de Morais, a Constituição Federal, o Código de Processo Penal, a Bíblia, a Torá, o Regulamento do Condomínio ou qualquer pedaço de papel que denote um mínimo de racionalidade sobre o espaço e função de cada um na sociedade. Confundir criminalista com o crime é dizer que o lixeiro é o lixo, que o médico é o câncer, que o padre é o pecador – enfim, que são iguais. Não venha me dizer que estes possuem apenas contato com o mal, que o combatem, ao passo que o criminalista lhe proporcionaria refúgio. Na verdade, se o lixeiro recolhe, se o médico enfrenta e se o padre perdoa, o criminalista entende – ou ao menos busca entender – um fato do mundo para o qual todo mundo vira as costas. O contato com o crime, com o criminoso, no entanto, é consequência... não razão de ser da Profissão. O objetivo, o motivo pelo qual um estudante decide que quer advogar e não ser juiz, ou promotor, ou delegado, o que dá vontade de ir além, de se tornar criminalistas e lidar com lágrimas, sangue, raiva, frustrações e alegrias... é o amor. Amor ao próximo, à humanidade e suas circunstâncias, mas, principalmente, à Lei. Ser Criminalista é isso, é amar a Lei. Um amor doido, cego, intransigente e incondicional, a ponto de se brigar pela sua validade em todo e qualquer caso, mesmo naqueles mais horrendos. A mesma Lei do Frei Beto tem que ser a do Maníaco do Parque, com todas as garantias, com todos os detalhes e, se a Lei for descumprida, desrespeitada, então não vale... Simples assim! A absolvição de culpados não é um objetivo, mas o efeito colateral do império da Lei do Direito contra a Lei do Mais Forte, valendo lembrar que cabe ao criminalista, quando chamado a fazê-lo, também a defesa da vítima. Quem não gosta, quem não entende e mistura lixo com lixeiro é gente cujo pensamento não cheira bem e que, como tantas vezes acontece, costuma bater às nossas portas pelas piores razões possíveis. Com a maior cara de pau do mundo!