O Último Homem e a crise da advocacia moderna: entre a futilidade estética e a falência da profundidade

“‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?’ — assim pergunta o último homem e pisca os olhos.”
Ao elaborar o conceito do “último homem” em Assim Falou Zaratustra, Nietszche descreveu o produto terminal de uma civilização que abriu mão da transcendência. O “piscar os olhos” carrega uma ironia existencial profunda. É um gesto simbólico de apatia, de quem já não se vê capaz de concentrar o verdadeiro sentimento de se emocionar com algo; é um movimento automático, animalesco e sem qualquer densidade de pensamento ou consciência. É um ato que evidencia a ausência de poder.
É como o piscar de um animal inócuo que perdeu o próprio espírito e se sujeitou acriticamente à repetição das coisas. É quase como um gesto biológico do conformismo.
O último homem é aquele que não deseja mais criar, mas apenas sobreviver; não busca compreender, mas apenas se adaptar. Ele não contempla verdadeiramente mais nada. Vive sem paixão e sem profundidade. Sua segurança está na mediocridade, na repetição, no conforto existencial, superficial e estético dos algoritmos, das trends, dos reels e das séries clichês de streaming.
É aquele que abdica da grandeza em troca da estabilidade anestésica de um cotidiano entorpecedor, marcado pelo “rolar de tela” desprovido do brilho real da vida, da arte e do desenvolvimento intelectual.
É essa a caricatura da civilização no ocaso. É exatamente esse espírito que se manifesta, hoje, em ampla parte da advocacia brasileira.
Com quase 1,5 milhão de advogados no país, a profissão que já foi exercida por grandes ícones passa por um processo de esvaziamento cultural, estético e prático.
A função essencial à justiça e à democracia, prevista na Constituição da República, tem sido reduzida a um estereótipo de rede social, a uma performatividade superficial, a um exibicionismo vazio que se contenta com likes e frases feitas. A figura do advogado tornou-se personagem: chamativo, sorridente, conectado, fotogênico, mas absolutamente indiferente à densidade intelectual, à cultura humanista e ao papel histórico que lhe cabe na mediação entre o cidadão e o Estado.
A advocacia não é — ou não deveria ser — apenas um produto digital. É arte, é técnica, é política. É ofício que se constrói na interseção entre o drama individual e a estrutura normativa do Estado.
Mas hoje, no mercado dos milhões, fala-se sobre a advocacia sem de fato praticá-la. E pratica-se sem compreendê-la.
Numa espécie de inversão do ethos profissional, a atratividade das redes vale mais do que os propósitos e a verdadeira nobreza da profissão.
A estetização do ofício levou à esterilização da advocacia em todos os seus aspectos [cultural, ético, humano, intelectual e estratégico].
As referências para os aspirantes do Direito passaram a ser figurões de seriados novelescos que enriquecem heroicamente em uma trama alheia à realidade da vida e àquilo que faz – ou deveria fazer – parte da formação advocatícia. Não há drama humano, não há compromisso político, não há existência. Há apenas velocidade, eficiência performática e um arremedo de glamour que distancia o profissional da realidade e da responsabilidade inerentes à profissão.
O resultado disso é um discurso advocatício infantilizado. E assim o ciclo se retroalimenta: uma sociedade superficial forma advogados superficiais, limitados à reprodução de uma estética que polui e enfraquece o elo entre a voz dos jurisdicionados e o Estado.
Esse empobrecimento tem dimensão política, cultural, educacional e civilizatória.
A advocacia não é apenas uma atividade privada: ela é ponte. Ponte entre o indivíduo e o Poder Público, entre o fato e a norma, entre o discurso e a Justiça. Prejudica-se, com essa crise civilizatória da advocacia, a tradução das dores concretas do ser humano em linguagem jurídica. Prejudica-se, com isso, o alcance ao sistema de justiça. Quando essa figura perde densidade, não é apenas a profissão que empobrece, mas a própria república.
Esse eco também ressoa na falibilidade da formação educacional. As faculdades de Direito se multiplicaram como franquias. A formação humanística foi substituída por um apostilamento massivo do saber. A leitura de clássicos deu lugar a resumos para provas e concursos. A apreciação dos ícones que fortaleceram os pilares da advocacia deu lugar ao consumo do conteúdo viral de blogueiros do Direito.
Há educação formal, mas não substancial.
Aprende-se o código, mas não o país. Decora-se a lei, mas não se entende as agruras que ela pretende tratar. Falta referência, sobra clichê. A linguagem perde poesia, filosofia e o lastro com o mundo. Resta apenas uma advocacia funcional, acovardada e tecnocrática – e mesmo a capacidade técnica está comprometida pelo exercício profissional raso e acrítico.
A necessidade de tradição não é saudosismo: é responsabilidade histórica. Pontes de Miranda, Sobral Pinto, Evaristo de Morais, Waldyr Troncoso Peres e tantos outros não são apenas nomes em uma estante empoeirada que ninguém mais acessa. São expressões de uma geração de advogados que compreendiam o Direito como instrumento de humanização da existência. Defendiam com palavras e com vivacidade. Dialogavam com a literatura, com a política, com a história. Sabiam que a advocacia não é uma carreira: é um chamado.
Reviver essa tradição não significa repetir seus moldes, mas sim restaurar seus fundamentos.
É preciso devolver à advocacia a sua profundidade, a sua espinha dorsal cultural, a sua densidade simbólica. O advogado precisa ler poesia, literatura, compreender filosofia, entender política, dialogar com o povo e com as autoridades.
A resistência à figura do último homem de Nietzsche é um ato de sobrevivência institucional.
É claro que é possível [e talvez necessário] se divulgar, mas se o discurso não carregar em si a profundidade de quem o fez, restará apenas a performatividade vazia de uma classe que não se reconhece mais como essencial à justiça, mas como uma caricatura digital de si mesma.
A advocacia atual pisca demais seus olhos. O custo de tudo isso é muito maior do que a perda de um ofício: é o enfraquecimento da democracia, é a falência da Justiça, é a civilização que desaprende a linguagem da sua própria defesa.
A advocacia não pode morrer de selfie. Há um país inteiro esperando ser defendido. Essa tarefa cabe ao advogado, não ao “último homem”.
